Falando a verdade, escola é uma chatice. Pelo menos a minha era uma
chatice. Essa história de aprender tabuada, fazer prova, lição de
casa... eu não gostava. Ficava feliz quando aparecia uma gripe. Existe
coisa melhor? Eu juntava todos os brinquedos em cima da cama. Traziam
revistinhas. Chocolates. Televisão no quarto. Era ótimo.
Disse que a escola era muito chata, mas esqueci de uma coisa: as aulas de desenho. Essas eram legais.
Toda sexta-feira, depois do recreio, a dona Marisa (naquele tempo a
gente não chamava a professora de "tia", nem usava só o nome dela, sem
nada, assim: "Marisa"; tinha de ser "dona Marisa") - enfim, a dona
Marisa saía da sala, e entrava a professora de desenho. A dona Andréia.
A dona Marisa era meio gorducha, usava coque no cabelo e se pintava
feito louca. Batom. Sombra azul nos olhos. Meio perua. Eu não gostava da
dona Marisa.
Mas aí entrava a professora de desenho. A dona Andréia era mocinha. Tinha cabelos castanhos. Lisos e compridos.
A aula de desenho era uma farra. A gente abria os cadernos, que não
tinham linhas, só folhas de papel em branco, para a gente fazer o que
quisesse. Podia. Dona Andréia deixava.
Ela era linda.
Um dia, ela se atrasou. O tempo ia passando, e ela não chegava. Todo mundo estava louco para ter aula de desenho.
Por que será que ela estava atrasada?
Nessa idade, a gente sabe muito pouco da vida dos adultos. Talvez a dona
Andréia tivesse brigado com o namorado. Pode ser que o diretor da
escola tivesse dado uma bronca nela. Vai ver que tinha alguém doente na
família.
Mas a gente não queria saber de nada. Só queria ter aula de desenho.
Foi quando a dona Andréia apareceu. Todos nós ficamos contentes.
Não foi só contente. Foi uma espécie de alegria total, de gritaria, de explosão.
Ela entrou na classe.
Alguém gritou:
- É a Andréia!
Não era o jeito certo de falar. Tinha de dizer "dona Andréia". Mas
àquela altura ninguém estava ligando. Todo mundo começou a gritar:
- É a Andréia! É a Andréia!
O berreiro foi ganhando ritmo. Como se fosse torcida de futebol.
- AN-DRÉ-IA! AN-DRÉ-IA!
Parecia um jogador entrando em campo. Ou um cantor de rock.
- AN-DRÉ-IA! AN-DRÉ-IA!
Ela começou ficando alegre com a zoeira. Deu um sorriso. O sorriso dela era lindo.
- AN-DRÉ-IA!
Depois, ela ficou um pouco assustada. Não estava entendendo a bagunça.
- AN-DRÉ-IA!
Foi então que eu vi. Ela começou a chorar.
E saiu da sala.
Na hora, não entendi.
Fiquei pensando.
Quem sabe ela se assustou muito. Talvez não imaginasse que a gente gostava tanto dela.
E, às vezes, muito amor assusta as pessoas.
Pode ser que ela tivesse ficado brava. Tínhamos de dizer "dona
Andréia", e não dissemos. Era meio chocante só dizer "Andréia", como se
ela fosse irmã da gente, ou apresentadora de televisão, ou empregada.
Ela também pode ter chorado por outro motivo qualquer. Estava triste
com o namorado, ou com alguma doença da família, e toda aquela alegria
da gente atrapalhando os sentimentos dela.
A Andréia nunca mais voltou.
As aulas de desenho acabaram. Comecei a perceber uma coisa.
É que às vezes, quando a gente gosta demais de uma pessoa, não dá certo. Dá uma bobeira na gente. A gente começa a gritar:
- Andréia! Andréia!
E a Andréia fica sem jeito. Não sabe o que fazer. Se assusta. Se enche.
Ouça este conselho.
Se você gosta muito de alguém, tome cuidado antes de fazer escândalo.
Não fique gritando "Andréia! Andréia!". Finja que você só está achando a
pessoa legal, nada mais. Senão a Andréia sai correndo.
Quando a gente gosta de alguém, tem de fazer como sorvete. Dá uma
mordidinha. Mas não enfia o nariz e a boca na massa de morango. Senão,
vão achar que a gente é idiota.
As pessoas da minha classe gostavam tanto da Andréia, que ela foi
embora. Se a gente fosse mais esperto fingia que não gostava tanto.
tsc
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